2 de junho de 2009

Na toca da loba

Escrevi essa crônica como homenagem ao dia das mães há uns 2 anos, mas nunca tinha publicado. Para esse tipo de coisa, toda hora é hora.


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Onze horas da noite. Reflexo desfocado no espelho e uma dor nas costas insuportável. Não bastasse a face desfigurada pela tonelada de cremes que a dermatologista recomendou (para, quem sabe, aparentar menos materna) ainda tenho de ser surpreendida por um entreolhar pela fresta da porta do banheiro e uma risadinha debochada (Ah, seu eu tivesse certeza que realmente é de deboche!).

- Sai daqui menino!

- Puxa mamãe-traquinas, você rechonchudinha assim é tããão fofa!!! Ainda mais com esse monte de creme “na cara”!! Parece um biscoito de chantily!! Que fominha mamãe! Ei, por falar nisso, tem mais comida?

E é assim que começa meu dia. Sim, meu dia! Não se espante pela aparente incoerência de o meu dia começar no tardar da noite. Quando se passa da versão de motor 4.0 o dia de todas as mães tende a começar na noite do dia anterior. Já que como o motor não tem volta, buscamos compensar na lataria, com uma ajudinha de nossos amigos dermatologistas e laboratórios produtores de pastas cremosas com nomes impronunciáveis.

A manhã seguinte será intransponível sem uma noite de descanso bem aproveitada. (Diga-se de passagem, oportunidade para sonhar com aquele “badboy” de cabelos levemente loiros e oleosos, corpo atlético, olhar de picareta que, apesar de toda a pose de mal-caráter, ainda se preocupa com o bem-estar da bela moçinha que está presa ao seu lado – Isso! Aquele mesmo do seriado em que todos estão perdidos em uma ilha não tão deserta).

Finalmente, deitada, depois de um profundo suspiro, prévia para o relaxamento corporal necessário para o sono, (não sei se é verdade, mas aquele e-mail que circulou no trabalho pareceu bem crível) permito que os olhos pesem e Morfeu se acomode neles.

Eis que o agradável peso de três pacas gordas, prontas para o abate, é sentido em cima das costas, e, mal abro os olhos e o detestável som do amor filial é ouvido num uníssono:

- Êêêêê!!!! Mamãe-traquinas vai dormir!!! Êêêê!!!! Montinho de amor na mamãe-traquinas!!!

“Sorte deles que as vassouras ficam na área de serviço!”, penso.

- Seus filhotes, de cruz-credo! Já não basta eu ter carregado vocês por nove meses? Vocês ainda querem se amontoar ainda mais?

Não sei quem foi o infeliz que disse que “ser mãe é padecer no paraíso!” (também visto em um dos e-mails que vi no trabalho).

Mas logo o desconforto do peso de todos aqueles marmanjos é deferido pelo calor do carinho, cada um escorrega e, aos poucos, o poleiro fica organizado. (Nessas horas teria sido prudente ser pouquinho menos “mão-de-vaca” e comprado a tal da “king-size”).

Depois dizem que a racionalidade nos distingue dos animais selvagem... A cena de uma matilha de lobinhos encostada na matriarca não deixa de refletir na minha cabeça toda vez que tiro os olhos da TV e fito os cruz-credo já calados e acomodados.

Pouco tempo se passa e já começam a debandar. Um beijinho de boa-noite aqui, uma tchauzinho da porta e a paz já volta a reinar no meu ninho do descanso.

Noite fria, noite quente. Chuva, sereno. Granizo muito raramente. Não importa. Paulatinamente às 5 da matina toca o despertador. Levanto, espreguiço-me e vou à caça. A prole é grande e tem de ser alimentada. Ainda não estão com idade para prover seu próprio alimento. (Um talvez, mas sou boazinha... Alimentarei enquanto for uma cria legal).

Camuflo-me. Munida de minha arma, saio à espreita da vítima que servirá de energia matinal para a prole. Ando por um tempo até sentir um odor diferente no ar... É ao mesmo tempo quente e atraente. Passo pelos campos de trigo. O calor e o cheiro se tornam mais fortes e próximos, agora, misturados com o odor de gordurinha animal salgada.

Foco-me e lembro de que não sou apenas eu, preciso prover a todos:

- Dez pães, por favor! Dez!

Saco a arma: “Crédito, Dona Joana; este mês está complicado”.

De volta à toca, já estão todos no aguardo do abate da manhã. Um deles até tenta reclamar da “pobreza da caça”... Nada que meu olhar fixo e compenetrante não resolva. O bichinho só abaixa a cabeça e começa a trucidar. Sinto vontade de rir.

- Agora vão estudar! O que já foi difícil para mim fica cada vez mais para vocês! Empenhem-se!

E, por oito horas, me vejo livre das pestinhas... Mas, atormentada pelos “pestões” e afins. Correria de trabalho, projetos e prazos se aliam e conspiram para que o que parecia um alívio se tornar uma saudade incontrolável.
“Vou ligar”, pondero. “Mas não atenderão – estão na escola, os proibi de levar o celular para lá”. Vou aguardar até a hora do almoço. As 2 horas restantes demoram mais do que os dois anos que fiquei na expectativa para atingir a maioridade e poder sair de casa.

“Finalmente!”. Ao fim do telefonema repenso o anseio que tive em ligar. Notas baixas “na área”. Vão precisar de reforço. Encrenca na escola. Diretora quer falar-me. Um quer crescer antes da hora, outro parece não crescer. Já o outro, parece que em algumas horas chega a regredir...

É complicado segurar a angústia. Se não bastasse, pepino de última hora para resolver. Chefe intransigente e equipe displicente agravam a tensão. Quero fugir para uma ilha deserta!!

Chego em casa dez quilos mais pesada. Não por ter comido demais. Pelo contrário, perdi o horário do almoço para falar com os pequenos não tão pequenos. (Mas foi até bom, estou em dieta). Penso se é hora de chorar. Entro calada. Preciso mostrar-me inabalável. Sou a chefe da matilha. Eles se espelham em mim. Preciso trabalhar com parcimônia a aprendizagem do grupo quanto ao mundo selvagem lá de fora.

Quando menos espero, o silêncio que tomava a toca é quebrado por passos apressados – quase uma corrida. Se não conhecesse o território pensaria ser um estouro de animais furiosos. Vêm todos os filhotes. Se jogam para cima da velha loba. Abraços, beijos:

- “Free hugs” da mamãe!! Abraço coletivo na mamãe-traquinas!!! Êêêêê!!! Te amamos “mamitcha”!!!

E, por instantes, todos os problemas parecem se esvair. Logo, com a mesma intensidade e rapidez que o alvoroço se iniciou ele se desfaz. Cada um toma seu rumo e os respectivos afazeres voltam a ser feitos. Em alguns momentos gostaria poder fazê-los por eles. Em outros, retomo a realidade e entendo que deve ser assim, e, provavelmente, com todo mundo assim também o é.

Vou ao abatedor da toca, começo a preparar o abate do fim da tarde. Sento e respiro fundo, ainda atormentada, agora, pelas obrigações do trabalho. Neste momento, sou surpreendida por um deles.

Ele fita-me os olhos e pergunta se está tudo bem. Penso em milhões de respostas, mas nenhuma sai. Ele deixa a cozinha. Sinto-me abandonada e questiono o reconhecimento que me concedem como provedora. Mas, inesperadamente, aquele que havia saído logo volta. Acompanhando-o todos os outros. Um por um me beijam, olham-me nos olhos, me abraçam e dizem que, apesar de filhotes, estão ali para o que der e vier.

- Daremos o melhor nós para não te decepcionarmos, mamãe-traquinas!

É... Quem foi mesmo que disse que “ser mãe é padecer no paraíso”? Pelo jeito, eu achei o meu.

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